terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O juiz reformado

Como houvesse o Senhor recomendado nas instruções do dia muita cautela no
julgar, a conversação em casa de Pedro se desdobrava em derredor do mesmo
tema.
— É difícil não criticar — comentava Mateus, com lealdade —, porque, a todo
instante, o homem de mediana educação é compelido a emitir pareceres na
atividade comum.
— Sim — concordava André, muito franco —, não é fácil agir com acerto, sem
analisar detidamente.
Depois de vários depoimentos, em torno do direito de observar e corrigir,
interferiu Jesus sem afetação:
—Inegavelmente, homem algum poderá cumprir o mandato que lhe cabe, no
plano divino da vida, sem vigiar no caminho em que se movimenta, sob os princípios
da retidão. Todavia, é necessário não inclinar o espírito aos desvarios do
sentimento, para não sermos vitimados por nós mesmos. Seremos julgados pela
medida que aplicarmos aos outros, O rigor responde ao rigor, a paciência à
paciência, a bondade à bondade...
E, transcorridos alguns instantes, contou:
—Quando Israel vivia sob o governo dos grandes juizes, existiu um magistrado
austero e violento, em destacada cidade do povo escolhido, que imprimiu o terror e
a crueldade em todos os serventuários sob a sua orientação. Abusando dos poderes
que a lei lhe conferia, criou ordenações tirânicas para a punição das mínimas faltas.
Multiplicou infinitamente o número dos soldados, edificou muitos cárceres e inventou
variados instrumentos de flagelação.
O povo, asfixiado por estranhas proibições, devia movimentar-se debaixo de
severa fiscalização, qual se fora rebanho de bravios animais. Trabalharia,
descansaria e adoraria o Senhor, em horas rigorosamente determinadas pela autoridade,
sob pena de sofrer humilhantes castigos, nas prisões, com pesadas multas de
toda espécie.
Se bem mandava o juiz, melhor agiam os subordinados, cheios de natural
malvadez.
Assim foi que, certa feita, dirigindo-se o magistrado, alta noite, à casa de um
filho enfermo, foi aprisionado, sem qualquer consideração, por um grupo de guardas
bêbedos e inconscientes que o conduziram a escura enxovia que ele mesmo havia
inaugurado, semanas antes. Não lhe valeram a apresentação do nome e as honrosas
insígnias de que se revestia. Tomado por temível ladrão, foi manietado,
despojado dos bens que trazia e espancado sem piedade, afirmando os sentinelas
que assim procediam, obedecendo às instruções do grande juiz, que era ele próprio.
Somente no dia imediato foi desfeito o equívoco, quando o infeliz homem
público já havia sofrido a aplicação das penas que a sua autoridade estabelecera
para os outros.
18
O legislador atribulado reconheceu, então, que era perigoso transmitir o poder
a subalternos brutalizados e ignorantes, percebendo que a justiça construtiva e
santificante é aquela que retifica ajudando e educando, na preparação do Reinado
do Amor entre os homens.
Desde a singular ocorrência, a cidade adquiriu outro modo de ser, porque o juiz
reformado, embora prosseguisse atento às funções que lhe competiam, ergueu,
sobre o tribunal, a beneficio de todos, o coração de pai compreensivo e amoroso.
Lá fora, brilhavam estrelas, retratadas nas águas serenas do grande lago.
Depois de longa pausa, o Mestre concluiu:
— Somente aquele que aprendeu intensamente com a vida, estudando e
servindo, suando e chorando para sustentar o bem, entre os espinhos da renúncia e
as flores do amor, estará habilitado a exercer a justiça, em nome do Pai.

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